A história sobre o porquê de os EUA continuarem de olho na Gronelândia

Poucas propostas diplomáticas na história contemporânea foram tão polémicas como a tentativa do Presidente Donald Trump de comprar a Gronelândia à Dinamarca. Talvez apenas o Brexit ou a saída dos EUA do Acordo Climático de Paris tenham gerado níveis de debate semelhantes. A proposta foi rapidamente rejeitada pelas autoridades dinamarquesas e amplamente criticada. Embora alguns saibam que os EUA foram crescendo através de vários momentos de expansão territorial, poucos têm a noção de que esta não é a primeira vez que a Gronelândia é alvo de aquisição por parte dos EUA. O que torna a batalha por esta ilha remota no Ártico tão renhida e porque é que está na lista de desejos de Washington há tanto tempo?

Precedentes históricos: Expansão territorial dos EUA

Durante milhares de anos, a América do Norte foi povoada por nativos americanos e permaneceu, em grande parte, desconhecida dos europeus. Só por volta do século XVI é que estes chegaram e encontraram uma terra com os mais diversos recursos naturais. Os franceses deslocaram-se para norte, os espanhóis estabeleceram-se no sul e no oeste e as colónias britânicas desenvolveram-se ao longo da costa leste. Os Estados Unidos seriam, originalmente, formados por 13 colónias administradas pela Coroa Britânica. No entanto, os Patriotas1 estavam cansados de ter de seguir regras e pagar impostos a um governo onde não tinham representação. Consequentemente, este descontentamento culminou na Guerra da Independência dos Estados Unidos (1775-1783). Após a derrota britânica, foi assinado um tratado de paz, nesse mesmo ano2. As colónias deram os primeiros passos em direção a um novo sistema de governo ao elaborarem o que viriam a ser os Artigos da Confederação, adotados pelo Congresso Continental em 1777 e ratificados em 1781. Esta foi a primeira constituição amplamente conhecida dos Estados Unidos.

Devemos notar que a forma de estado dos EUA era, inicialmente, uma confederação. Estas formam-se quando há uma união voluntária de estados independentes para atingir alguns objetivos em comum. Outrora, era comum as confederações antecederem as federações. Por exemplo, a atual Confederação Suíça, somente em nome, foi precedida por uma associação de cantões.

A razão pela qual as confederações geralmente não sobrevivem e, de facto, não existem hoje, é porque estas tendem a evoluir para governos centrais fracos. A maior parte do poder pertence aos Estados, individualmente, impedindo assim que a autoridade central funcione adequadamente. Tomemos, a título de exemplo, os EUA ao abrigo dos Artigos da Confederação. Neste caso, o Congresso tinha competência para aprovar leis, mas precisava de uma maioria de dois terços dos votos, o que tornava pouco provável a aprovação de qualquer legislação comum. Sem poder direto sobre as finanças do Estado, o governo não conseguia cobrar impostos, o que o deixava sem dinheiro para operar ou pagar as enormes dívidas que tinha para com a Europa. Mais importante ainda, não tinha exército nacional e não se podia defender3. Todos estes motivos levaram à adoção de um sistema federal mais centralizado, estabelecido pela Constituição de 1787.

Os EUA expandiram-se significativamente através de compras de terras e anexações de 1783 a 1853. Em 1803, através da “Compra da Louisiana”, o território duplicou com o usufruto de terras francesas. É fundamental referir que esta transação incluiu grande parte da zona central dos Estados Unidos, e não apenas o que conhecemos hoje como o estado da Louisiana. Mais tarde, em 1867, os EUA compraram o Alasca ao Império Russo por 7,2 milhões de dólares4, evento que marcou a sua primeira aquisição de terras no Ártico. Depois de ter sido derrotada na Guerra da Crimeia, a Rússia enfrentava dificuldades económicas e temia não conseguir defender o Alasca, especialmente contra as forças britânicas. O czar Alexandre II vendeu o Alasca aos Estados Unidos, ato este que acabou por fortalecer as relações entre o Império Russo e os Estados Unidos, ao mesmo tempo que a expansão britânica na América do Norte era impedida.

Os Estados Unidos já haviam negociado com a Dinamarca em 1917. Compraram as ilhas de São Tomás, São João e Santa Cruz, conhecidas conjuntamente como Índias Ocidentais Dinamarquesas (atuais Ilhas Virgens Americanas) por 25 milhões de dólares5, para reforçar a sua posição estratégica nas Caraíbas.

Mais precedentes históricos: negociações sobre a Gronelândia

A primeira menção acerca da aquisição da Gronelândia (e também da Islândia) ocorreu durante a administração de Andrew Johnson, em 1867, o mesmo ano em que o direito de propriedade sobre o Alasca foi transmitido. Algumas fontes sugerem que as negociações para a compra de ambos os territórios por 5,5 milhões de dólares6 foram quase concluídas, apesar de não ter sido feita qualquer oferta formal, eventualmente devido a conflitos dentro do Congresso americano à época.

A ideia ressurgiu em 1910, sob o comando do presidente William Taft, que propôs uma troca de terras com a Dinamarca. Os EUA trocariam Mindanao, nas Filipinas, pela Gronelândia e pelas Antilhas Dinamarquesas. Como vimos, a troca acabou por envolver apenas Mindanao e as Ilhas das Caraíbas. A Gronelândia foi posta de lado.

Durante a Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha ocupou a Dinamarca, surgiu a ameaça de que as forças nazis poderiam invadir a Gronelândia. Os EUA então, com autorização da Dinamarca, ocuparam a ilha temporariamente em 1941 e criaram bases militares para frustrar tais ocorrências. Após o fim da guerra, o presidente Harry Truman, agora preocupado com o crescimento da União Soviética, ofereceu oficialmente 100 milhões de dólares7 à Dinamarca pela Gronelândia. O Reino da Dinamarca recusou, permitindo, contudo, que os EUA estabelecessem bases militares na Gronelândia, nomeadamente a Base Aérea de Thule, que ainda hoje se encontra em funcionamento.

A ideia reemergiu novamente no primeiro mandato do presidente Donald Trump, que tentou formalmente comprar a Gronelândia em 2019, o que é um facto surpreendentemente pouco comentado. A primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, já na altura, considerou a proposta absurda, levando Trump a cancelar uma visita de Estado ao país.

Porque é que os EUA estão hoje interessados na Gronelândia?

A Gronelândia é querida pelos EUA, tanto pela sua localização estratégica como pelos seus recursos naturais. Com o degelo do Ártico, devido às alterações climáticas, as rotas comerciais na região estão a tornar-se mais navegáveis. Com o tempo, novos trajetos surgirão, permitindo que os navios utilizem as rotas do Norte, que são mais curtas do que muitas das tradicionais do Sul.

A mineração na Gronelândia está a aumentar à medida que a procura global de elementos de terras raras cresce, um conjunto de 17 metais essenciais para tecnologias como a eletrónica de consumo, sistemas de energia renovável e equipamento militar. O derreter do gelo está a deixar expostos depósitos inexplorados destes recursos, tornando a região cada vez mais atrativa. Atualmente, a China domina 60% do fornecimento total de ETR a nível global e controla 90% da sua refinação, algo que levou países como os EUA a procurar a Gronelândia. No entanto, a extração destes materiais apresenta desafios, tais como as preocupações ambientais, a necessidade de infraestruturas e a oposição das comunidades locais devido aos impactos ecológicos e culturais.

Interface Ree

A sua localização estratégica também facilita operações militares. Embora os EUA já tenham uma base aérea na ilha, controlar a zona na sua totalidade dar-lhes-ia uma vantagem significativa na monitorização da região, especialmente face às tensões com a China e a Rússia8. A China criou a Faixa e Rota da Seda, uma componente da sua Iniciativa “Uma Faixa e uma Rota”, para desenvolver as rotas de navegação e os recursos do Ártico, parte da sua política de comércio externo. Também investiu em alguns projetos russos, incluindo o Yamal LNG, uma das maiores operações de gás natural que nasceu em 2017, e o Arctic LNG 2, com início previsto para 2026. Enquanto o Ocidente impôs sanções que limitaram o acesso da Rússia aos mercados mundiais, a China tem sido o fator que aligeira os efeitos destes castigos.

Esta aliança que tem vindo a ser fortalecida entre a China e a Rússia contrasta com a atitude americana sob a administração Trump, que consistentemente descarta a Europa como um aliado tradicional, ameaçando-a com tarifas, negando apoio à Ucrânia e adotando políticas que prejudicam as relações transatlânticas. Ao mesmo tempo, figuras como Elon Musk têm demonstrado cada vez mais o seu apoio aos partidos de extrema-direita europeus, muitos dos quais se opõem à UE e defendem a redução da cooperação na Europa. Com esta mudança de perspetiva e a teimosia de Trump, é provável que os EUA se estejam a distanciar da Europa e continuem a pressionar a Dinamarca e outros países europeus em relação a este assunto.

O Princípio da Autodeterminação

Nos dias de hoje, um dos obstáculos a qualquer tentativa dos EUA de comprar a Gronelândia é o princípio da autodeterminação. Tanto a Carta das Nações Unidas (artigo 1(2))9 como o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 1(3))10 declaram que os habitantes da Gronelândia têm direito à autodeterminação relativamente ao seu estatuto político. Antes da Segunda Guerra Mundial, este princípio não era amplamente reconhecido ou respeitado e as populações locais não tinham poder para consentir nos acordos comerciais que afetavam as suas vidas. Ainda assim, imaginemos que a Dinamarca decide finalmente vender a Gronelândia. Mesmo nesse caso, tal acordo seria bastante complicado, uma vez que a Gronelândia tem vindo a tornar-se mais soberana dentro do Reino da Dinamarca.

Após o referendo de 2008, apenas os assuntos da política externa e da defesa se mantiveram sob jurisdição central. Em junho de 2009, entrou em vigor a Lei de Autogovernação da Gronelândia11, o que veio a confirmar a maior autonomia da Gronelândia. Além disso, dois membros do Parlamento dinamarquês são agora eleitos pela Gronelândia. Deste modo, nenhuma decisão sobre o futuro político da Gronelândia pode ser tomada unilateralmente pela Dinamarca. De facto, uma sondagem recente revelou que 85% dos gronelandeses se opõem à integração nos Estados Unidos. Qualquer tentativa de comprar a Gronelândia sem o consentimento explícito do seu povo constitui uma violação do direito internacional, do qual os EUA têm sido historicamente um forte defensor.

Embora a Gronelândia procure uma maior independência face a Copenhaga, tê-la na totalidade pode gerar riscos, uma vez que o seu estatuto atual enquanto território da Dinamarca garante a sua inclusão na NATO. Esta hipótese pode abrir as portas para que a Rússia ou a China ganhem influência na região, à semelhança do que aconteceu na Ucrânia, que agora está desesperada para se tornar membro da organização.

Mercados de previsão

Será que os EUA irão adquirir a Gronelândia? A questão é complexa. Ainda assim, podemos analisar os mercados de previsão para nos pronunciarmos acerca da matéria, já que são bons indicadores de eventos que podem vir a acontecer no futuro. Neles, os utilizadores criam sondagens e podem investir no resultado que creem que irá ocorrer. Quanto mais pessoas votam numa opção, mais dispendiosa esta se torna e menor será o retorno potencial.

Estes mercados são muitas vezes mais precisos do que os estudos feitos por universidades ou inquéritos apresentados nas notícias, pois existe um incentivo financeiro para haver exatidão. Os mercados de previsão funcionam com recurso a um instrumento financeiro conhecido como contrato de evento. Um contrato de evento tem um valor nominal, geralmente de 1 dólar, e os traders podem comprar ações de “sim” ou “não” por uma fração desse valor. Quando o evento finalmente se verifica, o contrato paga o valor acordado a quem estava correto. Existem riscos, como a manipulação; tentativas de manipulação dos mercados incluem eventos em que candidatos políticos apostam em si próprios (por exemplo, pode acontecer que Trump aposte na opção “sim” na aquisição da Gronelândia, acabando por forçar o acontecimento, mesmo que seja contra os interesses americanos, para ganhar a sua aposta).

Um dos mercados de previsão mais conhecidos é o Polymarket, que utiliza a plataforma de blockchain Ethereum. No Polymarket, os utilizadores podem apostar nos mais variados temas, incluindo desporto, política, criptomoedas e cultura pop. A plataforma cobre quase todos os assuntos, e a questão da Gronelândia não é exceção. À medida que o primeiro mês do ano chega ao fim, encontrei dois mercados ativos no Polymarket focados no tema deste artigo: “Será que Trump vai adquirir a Gronelândia antes de julho?”12 e “Será que Trump vai adquirir a Gronelândia em 2025?”13. Este último mercado, com uma perspetiva de mais longo prazo, mostra que, embora a probabilidade de um acordo se mantenha muito baixa, os participantes estão um pouco mais otimistas quanto à possibilidade de Trump garantir um acordo até ao final de 2025 (atualmente ronda os 13%).

Interface Polymarket
Interface Polymarket Detalhe

Conclusão

Os EUA sempre tiveram uma política de expansão territorial baseada em interesses estratégicos e económicos e a Gronelândia continua a ser um alvo, devido às vantagens militares e aos ricos recursos naturais que proporciona, e talvez devido ao desejo de Trump de se destacar. No entanto, existem várias complicações que em aquisições anteriores não se figuram como um problema, como a compra do Alasca ou das Ilhas Virgens, para não falar da elevada relutância da Dinamarca em negociar. O princípio da autodeterminação, reconhecido pelo direito internacional, é um grande obstáculo à compra do território. Parece politicamente impossível adquirir a Gronelândia, uma vez que 85% dos gronelandeses se opõem à integração nos Estados Unidos, ao mesmo tempo que se tornam cada vez mais autónomos em relação à Dinamarca.

Em vez de aquisições grandiosas estilo colonial, os EUA deveriam procurar construir uma parceria com a Europa baseada em interesses económicos e de segurança mútuos. Com esta abordagem, os EUA poderiam alcançar os seus objetivos estratégicos no Ártico, evitando tensões com um aliado de longa data e preservando a sua influência global, da qual tanto beneficiam.

Concluindo, a Gronelândia parece destinada a ser, mais uma vez, uma fantasia historicamente irrealista para os expansionistas americanos. Renomear o Golfo do México parece bastar.


  1. Aqueles que apoiavam a independência em relação à Grã-Bretanha eram conhecidos como Patriotas, e os colonos que se opunham à independência eram conhecidos como Lealistas. ↩︎

  2. Tratado de Paris, como muitos outros. Recebeu esse nome, porque foi negociado e assinado em Paris, já que era costume negociações diplomáticas terem lugar nesta cidade. Além disso, a França desempenhou um papel fundamental no apoio às colónias americanas contra a Grã-Bretanha, por isso fazia sentido que as negociações de paz ocorressem lá. ↩︎

  3. Greene, Jack P. “The Background of the Articles of Confederation.” Publius 12, no. 4 (1982): 15–44. http://www.jstor.org/stable/3329661 ↩︎

  4. Cerca de 155 milhões de dólares hoje ↩︎

  5. Cerca de 620 milhões de dólares hoje ↩︎

  6. Cerca de 120 milhões de dólares hoje ↩︎

  7. Cerca de 1,2 mil milhões de dólares hoje ↩︎

  8. Escritório de Informação do Conselho de Estado da República Popular da China, Política do Ártico da China, janeiro de 2018, https://english.www.gov.cn/archive/white_paper/2018/01/26/content_281476026660336.htm ↩︎

  9. Nações Unidas. Carta das Nações Unidas, Artigo 1(2). 1945. https://www.un.org/en/about-us/un-charter ↩︎

  10. Nações Unidas. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, Artigo 1(3). 1966. https://www.ohchr.org/pt/instruments-mechanisms/instruments/international-covenant-civil-and-political-rights ↩︎

  11. Governo da Dinamarca, Lei da Autogovernação da Gronelândia, Junho de 2009, https://english.stm.dk/media/10522/gl-selvstyrelov-uk.pdf ↩︎

  12. https://polymarket.com/event/will-the-us-acquire-greenland-before-july ↩︎

  13. https://polymarket.com/event/will-trump-acquire-greenland-in-2025?tid=1738509255482 ↩︎

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