Devagar, devagarinho, devagar

Era sexta-feira ao final da tarde, um daqueles dias longos de aulas até às 19h45, mas que na verdade acabam sempre uns minutos mais cedo, porque toda a gente quer ir para casa. Tem estado a chover todos os dias, por isso, sexta-feira costuma ser o dia em que me apaparico e, em vez de aproveitar o passe, peço um Uber. Toda a gente sabe que em dias de chuva o preço dos TVDE aumenta entre 100% e 200% e, como há tanta procura, às vezes demoram 15 minutos para chegar. Ainda assim, é uma forma de me dar ao luxo, porque no carro sou só eu e o condutor, que, esperançosamente, estará calado e me deixará ouvir a minha playlist, para não ter de estar constantemente a tirar o auricular e perguntar: “Desculpe, pode repetir?”

Às vezes, sou curiosa. Apanho um destes carros para passar menos tempo nos transportes públicos, mas, com a chuva, acabo por esperar meia hora para ver se há uma aberta e os preços descem. Depois, mais cinco minutos para o carro chegar, uma completa fábula, já que o engarrafamento é habitual. O mais curioso ainda é que acabo por pedir uma viagem partilhada, porque é uns cêntimos mais barata e porque estou sempre na esperança de que ninguém venha. Ou seja, o fator tempo e o fator solidão perdem-se completamente, mas a minha mente ainda pensa: é sexta-feira, está a chover, vou pedir um Uber porque mereço.

Este dia foi especialmente moroso. Quando o carro chegou, acabei por me sentar no lugar do passageiro, ao lado do condutor, porque havia duas raparigas brasileiras atrás. Durante os 20 minutos que estive com ambas, não se calaram. Inicialmente, pensava que eram amigas, pois falavam com naturalidade. Rapidamente percebi que não. Perguntavam uma à outra há quanto tempo estavam em Portugal, o que estavam cá a fazer, se iriam ficar aqui ou voltar, entre outras coisas.

Percebi que eram ligeiramente mais velhas do que eu pelas aventuras que já tinham vivido. Uma delas contou que, quando era mais nova mas já vivia na Europa, decidiu viajar para um país nórdico qualquer e acabou por ser presa durante uns dias. Disse que esteve detida com outros latino-americanos e asiáticos, queixando-se do racismo que havia motivado as várias detenções. O ambiente no carro era caótico. As duas mulheres conversavam intensamente e o condutor, apesar de ligeiramente desconfortável com o ruído, também tinha o Waze no máximo a dar instruções a cada cinco segundos. Sabemos como são as ruas de Lisboa, vira aqui, vira ali, mais um desvio, fique à direita.

Finalmente, a primeira rapariga chegou ao seu destino dentro da freguesia de Arroios, a poucos metros da minha morada. Pensei: “Em dois minutos estou em casa. Finalmente posso jantar e tomar um duche”. Mas não. A próxima paragem era para deixar a outra passageira em Santa Apolónia. O que significava que, em vez de ser deixada em casa daqui a dois minutos, teria de fazer mais 15 minutos para lá e outros 15 para voltar ao ponto onde estávamos. Olhei para o mapa e murmurei: “Não percebo.” O condutor, em tom de concordância, interveio logo: “Diga, diga. Diga-me o que acha.” O trajeto era completamente ilógico, um desperdício de tempo e de combustível. Era precisamente por isso que as opções de partilha de viagens já haviam sido implementadas e acabaram por ser retiradas no passado.

Eventualmente, começou a falar do antigo trabalho, com gosto. Foi motorista de autocarro durante muitos anos, até ter de se reformar aos 65. Recordava as viagens longas, especialmente as noturnas, quando os passageiros partilhavam histórias e desabafos para o manter acordado. Mas quando lhe perguntei se gostava do que fazia agora, o seu tom mudou. O entusiasmo deu lugar a um encolher de ombros resignado. “Agora? Agora é outra coisa.” Mal se reformou, começou a trabalhar como motorista de Uber. Já lá vão dez anos.

Contou-me que, antes, quando surgiam problemas, pelo menos havia um lugar onde estes tentavam ser resolvidos. Era no centro comercial das Amoreiras que existia e ainda existe - mas estar ou não estar é igual -, um escritório da Uber, onde tanto clientes como condutores podiam apresentar reclamações cara a cara, mesmo que não resultassem em nada. Agora, tudo se resume a formulários impessoais, pré-formatados, com respostas automáticas. Como se um algoritmo adivinhasse todos os motivos pelos quais as pessoas se queixam.

Disse também que a Uber Share aparece sempre como a primeira opção na aplicação, como um daqueles produtos que os supermercados põem à altura dos olhos para nos fazer acreditar que precisamos deles. Mas as pessoas não leem os termos e condições antes de pedir boleia. Há quem venha em grupos de 3 pessoas, apesar do condutor só poder transportar uma neste modo. Acaba por ser um pick up escusado. A propósito disto, contou-me um episódio caricato. Há uns dias, um advogado, com aquele medo que só eles sabem incutir nas pessoas, pediu-lhe, quase em pânico, para não apanhar mais ninguém pelo caminho. Precisava de estar num julgamento em 20 minutos, como se a justiça nunca estivesse atrasada.

Falou-me ainda sobre o aumento do número de autocarros em Lisboa e arredores, que, em teoria, deveria facilitar a vida de toda a gente, mas, na prática, pouca diferença faz. Havendo falta de parques de estacionamento na cidade, as ruas estreitas acabam por ser preenchidas por carros à esquerda e à direita. Por acaso, lembro-me de ler um artigo cujo título dizia que, por cada lugar de estacionamento em Lisboa, existem quatro carros. Os autocarros muitas vezes não conseguem passar e têm de esperar pelos proprietários dos veículos para virem removê-los. Isto faz com que os dois ou três autocarros que fazem o mesmo caminho acabem por andar uns atrás dos outros. “Se há mais que um autocarro a fazer a mesma carreira, quase que dá ao mesmo”, dizia ele, num tom meio cínico, meio conformado. Afinal, nem há assim tantas pessoas à espera para justificar um desfile de autocarros. “E depois admiram-se do sistema não funcionar bem…”

A conversa foi interrompida quando, finalmente, cheguei ao meu destino. Saí do carro com uma mistura de cansaço e reflexão. Talvez, da próxima vez, não me apaparique com um Uber. Afinal, os transportes públicos têm os seus problemas, mas não tenho de percorrer a cidade inteira por ruelas antes de chegar a casa, por um preço mais ou menos razoável.

Enquanto subia as escadas do apartamento, pensava em como os transportes públicos são um dilema constante aqui. Queixamo-nos dos atrasos, da lotação, dos percursos absurdos. Quando comparamos a nossa situação à de outras cidades europeias como Viena, Zurique ou Copenhaga, a verdade é que os transportes públicos funcionam muito melhor. Talvez o verdadeiro luxo não seja um carro só para mim, aprecio cidades pouco congestionadas. Preferia um metro pontual e mais extenso, mais caminhos acessíveis para bicicletas ou ruas menos lotadas.

Ainda assim, há algo quase romântico neste caos. Há um certo espírito lisboeta em reclamar do tempo de espera enquanto se bebe um café numa pastelaria ao lado da paragem. Talvez os transportes públicos não sejam perfeitos, mas condizem com a intensidade da cidade. E, por mais que me renda à comodidade do Uber, no fundo sei que é nas filas do metro ou nos bancos dos autocarros e elétricos que Lisboa realmente acontece.

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